Nestas últimas semanas tenho me dedicado a um dos momentos que todo pós-graduando (de mestrado e doutorado) teme: a qualificação – que nada mais é do que o momento em que você tenta provar à comunidade científica que você sabe o que está fazendo, mesmo que a única coisa em que acredite seja: “só sei que nada sei”, sentimento eternizado na famosa frase de Sócrates.
Tendo me debruçado nesta tarefa, pensei: por que não falar sobre o que eu trabalho na coluna? Afinal, acesso ao saneamento é básico – não podia deixar de usar o trocadilho.
Quando penso em saneamento, penso em quem tem acesso a ele e, lembrei-me que recentemente, o governo federal anunciou a “erradicação estatística” da miséria, ou seja, há um número (estatisticamente) irrelevante de pessoas que ganha menos de 70 reais por mês. O slogan do governo é “País rico é país sem pobreza”, diante dessa frase não consigo deixar de fazer algumas perguntas: O que é pobreza? Quantas pessoas no Brasil são contempladas pelas políticas sociais deste governo? O que se pode fazer com 70 reais quando mesmo a cesta básica custa aproximadamente 90 reais? Como vivem as pessoas que ganham menos de 70 reais ou pouco mais de 70 reais? Ao fazer estas perguntas, penso que é necessário rediscutirmos certos paradigmas como a renda, a desigualdade social e o desenvolvimento.
Para os estudiosos da minha área é clara e direta a ligação entre renda e acesso ao saneamento. E como não estou aqui para falar de coisas agradáveis, não vou falar de como a água tratada e a coleta de esgoto têm beneficiado as crianças do Leblon ou dos Jardins, já que os percentuais de cobertura nesses lugares devem beirar os 100%. Falarei de como é visitar o Parque das Bandeiras, na periferia de Campinas (interior de São Paulo) e ver crianças que moram em barracos pularem entre os córregos de esgoto a céu aberto para irem à escola e onde a água potável não chega na torneira.
Vendo esta cena é impossível não pensar na quantidade de doenças de veiculação hídrica em que – não só as crianças como todos os moradores de bairros em situação análoga – estão sujeitos. Embora alguns estudiosos da área prefiram o termo “doença da pobreza” ao invés de “doença tropical”, por constatar que países de economia central (como Estados Unidos, Inglaterra, França, etc.) há cerca de 100 anos também vivenciaram doenças parasitárias – como a ancilostomíase, ascaridíase e malária – pelas péssimas condições de moradia, trabalho, educação e saneamento, os gráficos abaixo mostram que essa situação é muito mais frequente nos países periféricos (como os países da América Latina, África e vários países da Ásia), sendo que grande parte destes estão situados na zona intertropical do globo, daí o termo “doença tropical”.
O primeiro gráfico revela que a esmagadora maioria da população em situação precária no mundo vive em países da periferia. No gráfico seguinte é possível ver que a distribuição da população nas classes sociais apresentadas difere muito nos países do centro e nos da periferia. Enquanto nos primeiros há quase uma distribuição homogênea entre as classes e, as classes intermediárias (populares e estabilizadas) são a maior parcela, nos países da periferia a realidade é totalmente diversa. As classes “Populares e Precárias” são muito maiores em países de economia periférica, abrangendo mais da metade da totalidade populacional, ou seja, fica gritante a desigualdade social quando menos de 20% estão nas classes média e rica e mais de 60% ocupam as classes mais baixas. Sabendo que a população nestes países é muito maior que a dos países de economia central, dá para imaginar a quantidade de pessoas que provavelmente não têm acesso adequado ao saneamento e que, portanto, estão sujeitas a essas doenças.
Para exemplificar, só no Brasil, a última Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSB) aponta que em 2008 somente 55% dos municípios tinham rede coletora de esgotos. Uma das coisas que este dado não mostra é algo que justamente as empresas de saneamento querem esconder: a extensão da rede, a qualidade do atendimento, o número de domicílios atendidos e o tipo de tratamento, já que o esgoto é a principal fonte de contaminação de doenças tropicais. Há ainda um percentual baixo de municípios que tem tratamento de esgoto adequado, sendo 28% no país. Neste ponto, até Sócrates diria saber que o país ainda carece muito de saneamento, principalmente a população mais pobre.
o Programa Bolsa-Família não é um problema em si, o problema é a noção de pobreza que o slogan explora: uma família que não tem acesso aos serviços básicos que devem ser garantidos pelo Estado, não pode ser considerada “não-pobre” só porque consegue consumir mais. O paradigma do desenvolvimento não pode basear-se em padrões de consumo, desenvolvimento implica em prover infraestrutura para todas e todos!”
Deste modo, volto-me ao slogan do governo federal e digo: fácil é dar bolsa-família, difícil mesmo é acabar com a desigualdade social!
Contudo, o Programa Bolsa-Família não é um problema em si, o problema é a noção de pobreza que o slogan explora: uma família que não tem acesso aos serviços básicos que devem ser garantidos pelo Estado, não pode ser considerada “não-pobre” só porque consegue consumir mais. O paradigma do desenvolvimento não pode basear-se em padrões de consumo, desenvolvimento implica em prover infraestrutura para todas e todos!
Ou seja, não se limita a diminuição da diferença entre a renda, trata-se fundamentalmente de erradicarmos as diferenças entre o acesso e a qualidade da educação, do emprego, da cultura, do transporte, da moradia, dos cuidados de saúde, do saneamento e de um ambiente equilibrado.
Colaborações:
Luis Espinoza, Thalita Cruz e André Santiago
Fontes:
Charges do Benett. Disponível em: http://chargesdobenett.zip.net/
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional de Saneamento Básico 2008. Rio de Janeiro, 2010.
PORTO-GONÇALVES, C. W. A globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.